segunda-feira, 2 de novembro de 2015

A formação de educadores e a constituição da educação de jovens e adultos como campo pedagógico - Vera Masagão Ribeiro

 RESENHA: RIBEIRO, Vera Masagão. A formação de educadores e a constituição da educação de jovens e adultos como campo pedagógico. Educação & Sociedade, ano XX, n. 68, dezembro, 1999.

          Apesar de datado no final da década de 1990, o artigo de Ribeiro (1999) é uma referência no campo das pesquisas ligados à EJA, primeiramente por tratar de um dos maiores entraves qualitativos desta modalidade, que é a formação de educadores e, em segundo, por sistematizar os meandros da constituição da educação de jovens e adultos como campo pedagógico. Publicado na revista Educação & Sociedade o artigo tem como objetivo central discutir a formação de educadores da EJA de forma contextualizada ao processo de constituição da EJA como campo pedagógico, levando em conta o prejuízo que a perspectiva compensatória e assistencialista acarreta para construção da identidade da EJA e, por conseguinte, da profissionalização de seus educadores.
            Uma questão marcante no artigo de Ribeiro (1999) é a denúncia para a falta de formação específica dos educadores de jovens e adultos, o que resulta numa transposição inadequada do modelo de escola consagrado no ensino de crianças e adolescentes. A autora descreve uma passagem ocorrida em visita a uma escola de jovens e adultos na periferia de São Paulo, em que as falas da educadora, que passava por um processo de formação continuada, ora demonstrava um tratamento infantilizado de seus alunos, ora buscava dar relevância às experiências de vida dos educandos.
            Ao realizar a análise desta passagem, Ribeiro (1999) traz à discussão o conceito de cuidado, compreendido como parte integrante dos saberes do educador de crianças, que, naquele instante, era transposto intuitivamente para educação de jovens e adultos. Ao apresentar seus alunos com a frase “estas são minhas crianças”, sua referência simbólica é a educação de crianças e a maternagem[1], quando seu sentido era, na visão da autora, de atribuir cortesia com base na relação entre adultos, que seria pautada principalmente pela amizade e a reciprocidade.
            A infantilização dos educandos jovens e adultos está diretamente relacionada à assimilação da educação dos grupos populares e da EJA como ação filantrópica. As campanhas de alfabetização de adultos, que ao longo da história educacional recente repetiram estratégias de alfabetização de massa, são exemplos de políticas públicas que ajudam a consolidar esta visão. Ainda que nas últimas décadas a EJA venha ganhando espaço – ainda insuficiente – nas políticas públicas de financiamento da educação, a perspectiva assistencialista e infantilizadora são verdadeiros nós que impedem o avanço qualitativo da modalidade e limita as condições de se ofertar aos educadores uma formação mais adequada.
            Entre os efeitos perniciosos da perspectiva assistencialista da EJA, a autora destaca a desprofissionalização do educador de jovens e adultos. Este processo impede a constituição de um estatuto próprio da EJA, que sirva como subsídio para a formação de educadores, que seja capaz de compilar os saberes teóricos e práticos dos educadores da modalidade. A perspectiva não compensatória e assistencialista da EJA desfavorece a organização dos saberes no repensar da formação específica de educadores de jovens e adultos.
            Deste modo, Ribeiro (1999) aponta que a EJA no Brasil é desprovida de uma identidade própria e constante. Ao longo da história ela foi pautada por diversas campanhas, diversas concepções teóricas e esteve à sombra da educação regular, ora incentivada pela educação popular, ora pelo Estado e ora por organizações não governamentais. Com o objetivo de contribuir para a sistematização de conhecimentos fundamentais para a constituição de uma formação específica para educadores da EJA, a autora organiza três ideias-força que impulsionaram as tentativas de construir identidade dessa modalidade educativa:
1.      A dimensão política da EJA: trata-se do reconhecimento de que a educação de jovens e adultos se destina a membros de classes populares, segmentos excluídos do sistema escolar regular e de outras instâncias do exercício pleno da cidadania. Esta dimensão está diretamente relacionada á trajetória da EJA no Brasil, muito ligada à educação popular e à perspectiva libertadora acenada por Paulo Freire, que valoriza o diálogo e a noção de reciprocidade como princípios educativos fundamentais.
2.      As necessidades de aprendizagem da idade adulta: trata-se do enfoque privilegiado às necessidades de aprendizagem dos jovens e adultos, principalmente ligadas ao mercado de trabalho, ao exercício da cidadania e a promoção da qualidade de vida. A funcionalidade das aprendizagens constitui um fator de motivação para jovens e adultos retornarem à escola. Neste sentido, é preciso conceber uma EJA que combine a educação geral com a educação profissional, a teoria com a prática, o universal com o contextualizado, levando em conta os saberes construídos pelos educando ao longo de suas vidas, com o objetivo de fazer avançar sua capacidade crítica, sua criatividade e sua autonomia.
3.      As características cognitivas de alunos jovens e adultos: trata-se da especificidade do modo de aprender das pessoas jovens e adultas, possuidoras de estilos cognitivos próprios, na medida em que, ao se recolocarem na escola, carregam consigo ampla bagagem experiencial e modos de pensar bastante próprios. O desafio deste processo está em integrar os saberes adquiridos em sua experiência de vida com os conteúdos escolares. Há necessidade de aprofundamento das pesquisas no campo da psicologia do adulto.
Além dessas três ideias-força, Ribeiro (1999) também aponta para outros aspectos necessários para se repensar a formação do educador de jovens e adultos. Um deles é a necessidade de buscar novas formas de organização do espaço-tempo e novos meios de aprendizagem e progressão. Isto porque a EJA ainda é muito pautada pela mesma sistemática de organização das escolas e turmas regulares, desconsiderando, por exemplo, o tempo menor que pessoas adultas possuem para a dedicação aos estudos.
Seria necessário, desta forma, pensar modalidades adequadas às condições de vida destes sujeitos, como a flexibilização da frequência, tendo o devido cuidado para que a modalidade não descambe para uma individualização exagerada ou para modalidades de atendimento não presenciais, que desvalorizam o trabalho com conteúdos atitudinais e as interações sociais entre os educandos. O risco realçado pela autora é o de que a flexibilidade resulte em posturas laxistas e no barateamento dessa modalidade educativa.
As reflexões de Ribeiro (1999) neste artigo contribuem de forma fundamental para sistematização do conjunto de práticas e saberes minimamente articulados em torno de princípios, objetivos e outros elementos comuns na educação de jovens e adultos. Este conjunto é passível de ser organizado como conteúdo da formação inicial dos educadores e fonte para seu aperfeiçoamento profissional por meio da formação continua. Deste modo, o artigo aborda naquela data uma questão pouco investigada pela academia até a atualidade: a formação de professores da EJA e os saberes necessários para a construção do desenho ideal de formação. Em síntese, entre estes saberes e princípios, é preciso considerar a matriz freireana e o paradigma da educação popular, como elementos fundantes da EJA no Brasil, além das necessidades básicas de aprendizagem e saberes funcionais à vida cotidiana dos adultos e suas especificidades nos modos de aprender.

Referências:
RIBEIRO, Vera Masagão. A formação de educadores e a constituição da educação de jovens e adultos como campo pedagógico. Educação & Sociedade, ano XX, n. 68, dezembro, 1999.



[1] Termo utilizado pela autora: enfatiza as dimensões culturais da criação dos filhos, distinguindo-as da dimensão biológica da maternidade.